quinta-feira, 25 de julho de 2013

José Pedro Carvalho Marques

UM CONTO AO LUAR

A CIGANITA


Fora num domingo de tarde; numa tarde calorenta e convidativa à procura de sombras e de frescas e da água também. E quando não se tem mar perto, a sombra da árvore é o melhor que temos. E o parque, o melhor sítio. E lá estivemos algum tempo.
E regressámos a casa, com a temperatura um pouco mais amena. E entretivemo-nos a regar o jardim, enquanto, na estrada, o movimento de pessoas e viaturas ia aumentando.
Das pessoas que passavam na rua, a juventude era a mais abundante, na exuberância do irrequietismo próprio da idade, e de manifesta boa disposição, pelo que as risadas eram sinal de paz interior e esperança na vida.
Mas também passaram uns ciganos, de regresso ao acampamento, algumas centenas de metros acima, alguns dos quais era habitual baterem-nos à porta: não a pedir dinheiro mas um pouco de pão, roupa ou calçado. Passaram em grupo silencioso; e silenciosamente desapareceram na curva acima.
Instantes depois, surgem duas miuditas, aí dos seus treze anos, ciganas também e do mesmo clã. Vinham a brincar. Uma delas, de um saco plástico preto, que trazia nas mãos e cheio de papéis, dele fazia boneca. E a boneca embalava nos braços, encostada ao peito.
Ao ver-nos a regar o jardim, pediu-nos de beber. E nós deixamo-la beber, pelo que entrou no recinto do jardim. E como esta rapariguinha tinha sede! No entanto, achou graça ao chafariz da mangueira, que ora jorrava em jacto directo, ora o mesmo tomava a forma de leque, no qual a água quase se transformava em nevoeiro espesso e forte num largo círculo. Encantada com o espectáculo, pediu-nos para que a deixássemos também regar um pouquinho. E nós deixámos que a miúda se entretivesse a regar um pouco.
Sorria, gaiata, de olhos muito vivos e escuros, em rosto moreno e cabelos compridos, fortes, pretos. No seu corpo um nadinha reboliço, na sua estrutura de criança os seios iam ganhando formas de rapariga viçosa, flor silvestre perfumada em terreno bravio da montanha.
Assim entretida e a rir-se, deixou-se, depois molhar toda, virando para cima o jacto de água que até então regara as plantas e como chuva caía sobre ela. E depois de assim molhada, com toda a roupa colada ao corpo, mais a sua silhueta feminina se evidenciou, no pormenor de todas as suas formas que a generosidade da Natureza torneia com perfeição também nestas criaturas que, perante Deus, o são tanto ou mais que nós.
No entanto, não mostrava pressa de parar com o seu entretimento. Pedimos-lhe, por isso, que nos deixasse continuar a nossa rega. Sem nos ouvir, feliz, sorridente, de novo se deixou molhar pelo chuveiro que saía da mangueira. Insistimos. Tempo perdido.
Com alguma delicadeza, tivemos de tomar uma posição mais firme. Até de ameaça. Feliz como a ciganita estava assim a brincar, nada feito. Então, a outra solução mais eficaz tivemos de recorrer: Fomos pegar no cão; não para lhe fazer mal, já que ele até a ninguém assusta desde que a pessoa conheça. Porém, mal a ciganita o viu, quase o coração lhe caiu aos pés, de assustada. Num ápice, largou a mangueira e deixou, no chão, o saco de plástico preto com os papéis que tinha dentro e que, até ali, tinham sido a sua boneca. Numa fugida, assim, por um medo escusado, num instante desapareceu na curva onde há um bom pedaço os outros ciganos, em silêncio e sob o calor, haviam sumido também.
Ficou-nos a satisfação de podermos ter proporcionado a alegria de esta ciganita brincar assim com a água. Mas ficou-nos o remorso de a termos assustado.

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